quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

foi quando ela levantou-se e foi até o banheiro e nunca mais voltou.

Fazia muito barulho. Foi quando ela levantou-se e foi até o banheiro. Abriu a porta do consultório e andou até o corredor de trás. Virou a direita nele. E, muito comprido, no seu final revelava a porta do banheiro feminino aberta e de longe dava pra ver o vitrô da janela lá dentro, aberto. Ela correu e foi aumentando a velocidade até ultrapassar a porta do banheiro alçar vôo e sair pelo vitrô. E os pingos de chuva gelados atingiram-na em cheio. Arrepiou-se. E com os braços esticados pra trás junto ao corpo ela subiu. Pra cima de todos aqueles prédios que cobriam São Paulo, a chuva, o dia e o hospital. E olhou pra trás. Distanciando-se o asfalto. Foi alto o suficiente pra não esbarrar nas coberturas de antenas e fios. Mas baixo o suficiente para lembrar das cores da cidade. E então abriu os braços. E planou. E esteve presente ali. Observou os outros poucos que voavam. Irracionais, penosos, selvagens, vivos. E, exceto pela irracionalidade, comparou-se a eles e teve a plena certeza de que assemelhavam-se. Aumentava e diminuía a velocidade de acordo com o vento e com a dor que os pingos provocavam. Pinguinhos. E logo se foram. E um sol escondido quente iluminou seus pelos arrepiados. Pelinhos. Por detrás do céu e das nuvens e do que mais houver lá em cima, o sol. Ela sabia que estava chegando. Fazia sol onde ele estava. E aumentou a velocidade absurdamente, seu coque se desfez, o primeiro botão da camisa social abriu, sem querer. Ela deixou. Estava livre e a liberdade não combinava com fechar botões. Viu de longe a entrada na estrada. Desceu cadenciadamente. Entre casas baixas e carros caros e lojas e letreiros e pessoas existindo (pessoinhas) encontrou a padaria da esquina cheia de homens que fumavam. Inalou e virou a direita. Entrou pela janela aberta que fica em cima da pia da cozinha. A casa cheirava a sono. Cheirava seu hálito de beijo. Cheirava aquele desodorante que ela nunca lembrava a marca. E a casa estava quieta. Ela não ouvia som algum. Pousou silenciosa. À esquerda, pé ante pé, sala. Computador ligado mostrando um filme em pause. Ventilador desligado. O mesmo sol lá de cima entrava pelo vidro da porta. No quarto em frente, pouco escuro, pouco claro, uma luz de abajur ainda acesa embaixo da televisão. Celular na cabeceira aceso, mostrando a tela inicial e uma mensagem de alguém que não importava. E na cama, torto, ele dormia sem fazer barulho. Intacto. Brilhando. Coberto. Ela o achava mesmo lindo. Devagar apoiou na cama e o beijou silenciosamente. Primeiro na boca, depois no olho direito, olho esquerdo e por último na ponta do nariz. Ele sorriu em sonho. Ela sentiu algo. Pensou que fosse o sol por dentro. Pensou ter escutado caixinhas de música vibrando Bach e Brahms e a valsa opus 9 de Chopin, mas era só o peso do silêncio. Respirou fundo e sem desgrudar os olhos dele andou de costas até a janela da cozinha. Saiu voando passando a mão pelo manjericão propositalmente pra ele deixar um cheiro. Cheirinho. E com os braços esticados pra trás junto ao corpo ela subiu de novo. E lá de cima, no caminho de volta os pingos apareciam novamente, um pouco mais maduros e dolorosos. Retornou ao banheiro do hospital e encontrou-se olhando sua imagem molhada, descabelada, aberta e ardida no espelho e percebeu que Bethânia estava certa sobre a barulheira que a saudade tem. E percebeu também que estava livre para permanecer em silêncio.

Saiu do banheiro, passou pelas inúmeras salas, entrou na sua, guardou tudo o que podia na mochila, a pôs nos ombros e sem contribuir com os sons a sua volta dirigiu-se a porta de saída. Cruzou com dois homens vestidos de palhaço na sala de espera. Ela não soube dizer se pela sua imagem ou pelo seu ímpeto mas, ao cruzar olhares, os dois homens sorriram e cantarolaram uma música de amor qualquer e a acompanharam até o portão do estacionamento. Ela, agradeceu com a cabeça e entre risos e lágrimas de sal, optou por ir andando, caminhando, descalçando, manchando o caminho até o silêncio se fazer presente. 

2 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Arrebatado!!!
Chorei muito. Mas de muita felicidade, de poesia, de doçura e de desejo.
Amo diferente agora e isso não tem nada haver com posse ou presença (apesar que a segunda sempre é bem vinda). Tem haver com a liberdade, com imprevisibilidade, com admiração e com alegria.
Viva o samba! O inesperado! E o que realmente importa... o amor.