segunda-feira, 11 de maio de 2015

O longe e a miragem

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces 
Estendendo-me os braços, e seguros ... Se ao que busco saber nenhum de vós responde 
Por que me repetis: "vem por aqui!"? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, 
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, 
A ir por aí... 
Se vim ao mundo, foi 
Só para desflorar florestas virgens, 
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada. 
Como, pois, sereis vós 
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem 
Para eu derrubar os meus obstáculos?... 
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, 
E vós amais o que é fácil! 
Eu amo o Longe e a Miragem, 
Amo os abismos, as torrentes, os desertos... 
Ide! Tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátria, tendes tetos, 
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... 
Eu tenho a minha Loucura ! 
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, 
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... 
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, 
Ninguém me peça definições! 
Ninguém me diga: "vem por aqui"! 
A minha vida é um vendaval que se soltou, 
É uma onda que se alevantou, 
É um átomo a mais que se animou... 
Não sei por onde vou, 
Não sei para onde vou 
Sei que não vou por aí!" 

(Cântico negro, M. Bethânia) 

Nenhum comentário: