Toca o telefone, ele atende sonolento. Alô, Doutor ? Sim. Doutor, desculpe ligar a essa hora, aqui é Lúcia mãe do João Pedro. Estou preocupada com o João Pedro. Sim, minha filha, não tem problema, pode falar. Ah Doutor, o João não consegue dormir de jeito nenhum. Ele acende a luminária da cabeceira e se ajeita na cama. A esposa resmunga. É o que? Paciente? Essa mulher não sabe que horas são? E o cocô dele, Doutor, ta muito escuro. E também, Doutor, o senhor me desculpa ligar a essa hora, já medi temperatura, não ta com febre não e nem ta chorando não, mas não dorme esse menino. Meu marido não queria que ligasse, sabe Doutor, mas eu sei que o senhor entende. Sim, não tem problema nenhum pode falar. A esposa começa a roncar. O telefone está pesado na orelha por causa do sono, ele percebe isso de supetão e se senta na cama. Então Doutor, mas ele ta cansadinho não é de hoje, sabe, já tem uns cinco dias e o cocô também não é de hoje não. O senhor acha que meu peito não ta sustentando ele? Minha sogra me disse que criança dessa idade não é magrinha igual a ele Doutor. Aí hoje antes dele dormir eu dei uma papinha que ela trouxe aqui pra casa. Nada demais, só cenoura, beterraba, feijão , mas tudo amassadinho. Papinha é? E quantos meses tem o João Pedro mesmo Dona Lúcia? Mês? É, qual a idade dele? Ô Doutor, ele tem vinte e um dias. Ah sim. E então meu marido fica muito bravo quando eu não escuto minha sogra, sabe, né Doutor, ela já tem experiência. E minha mãe Doutor mora longe e então quem me ajuda é a mãe do meu marido. Olha Dona Lúcia...Doutor, o senhor acha que eu fiz errado? Sei lá, né, porque eu sempre tive medo de fazer alguma coisa errada, nunca tive filho, né Doutor. E levei um susto tão grande quando ele não dormiu hoje. To assustada até agora, Doutor. Olha Dona Lúcia...E o pior Doutor é que ele, depois que comeu a papinha, não quis mamar. Dona Lúcia, não precisa se...Doutor, sabe, to com vergonha, mas tenho que dizer a verdade. Já tem três dias que o João Pedro ta comendo papinha. Não foi só hoje não. Então, Dona Lúcia, antes de qualquer coisa a senhora fique calma. Ah Doutor, sabe que só de falar isso pro senhor já estou me sentindo melhor. Tava com muito medo do senhor brigar comigo, porque eu me lembro que o senhor orientou só dar o peito. A esposa acorda de novo. Mas ainda no telefone? Essa mulher não dorme não? Vou começar a deixar o telefone fora do gancho antes de dormir. Você precisa dormir, meu amor. Ah meu Deus, Doutor! O João dormiu! Ah, nem acredito, eu nem me dei conta porque deixei ele na cama enquanto falava com o senhor no telefone. Ah, que bom Dona Lúcia. Ah Doutor, muito obrigada pela orientação, me desculpe mais uma vez por ter ligado a essa hora, mas é que eu só confio no senhor. A esposa começa a roncar de novo. Que isso Dona Lúcia, não tem problema nenhum, qualquer coisa a senhora pode ligar de novo. Ah Doutor muito obrigada! Amanhã tenho uma consulta marcada com o senhor a tarde, a gente se vê. Muito obrigada, boa noite. Boa noite Dona Lúcia. E então ele perdeu o sono, continuou sentado até o dia clarear, feliz pelo João Pedro estar dormindo.
(Homenagem ao querido Prof. Itamar, que nos deixou órfaos de uma incrível e admirável sabedoria carinhosa e humana.)